Espaços públicos em São Paulo: praia de paulista é shopping?


Certa vez uma certa professora da USP afirmava que “praia de paulista é shopping”. Outro dia estava pensando a respeito. Basicamente duas coisas vieram à mente em primeiro lugar:

  • Parque Dom Pedro II (que hoje abriga um complexo viário, estação de metropolitano e terminal de ônibus urbanos);
  • Marginais Tietê e Pinheiros (sobretudo a Tietê), o que me fez lembrar do projeto do DAEE para o Parque Várzeas do Tietê.
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Parque Dom Pedro II nos dias de hoje

Durante algum tempo imaginei uma São Paulo diferente. Se o Parque Dom Pedro II sofresse uma requalificação verdadeira (e que, de maneira inédita solucionasse o problema do viário e do terminal de ônibus) e se as marginais fossem repensadas, criando um extenso parque com um número gigante de equipamentos e atividades possíveis, bem como os rios (que hoje são praticamente canais de esgoto) estivessem despoluídos (algo que exige o tratamento do esgoto em cidades como Guarulhos, pra começar), será que não podíamos dizer que a “praia de paulista” são os parques, lineares ou não, com rios e lagos? Será que não poderíamos reduzir a importância dos verdadeiros “bunkers” que são a maioria dos shoppings da Região Metropolitana? Digo… se os habitantes pudessem desfrutar de um comércio tradicional, acessível sem eleger o automóvel como principal meio de acesso, em áreas cuja vocação pra tanto é inegável ou existente, ainda que com um perfil mais popular (caso do Centro Velho), com certeza o fariam, ainda mais estando o comércio nas proximidades de um grande e agradável parque.

Hoje o principal parque de São Paulo é o Ibirapuera. Quem conhece sabe que ele fica (bem) cheio. O parque está entre os dez melhores do mundo, mas São Paulo tem mais de 10 milhões de habitantes, depois temos mais 10 milhões na Região Metropolitana.

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Ibirapuera visto do alto

Eu acho que podemos mais. Temos uma série de cidades que, mesmo em condição de dormitório ou semi-dormitório, ainda assim poderiam ter um urbanismo melhor, mais caprichado, algo mais cuidadoso. Com os sistemas de trens metropolitanos existentes, além de alguns serviços de ônibus da EMTU, quem se deslocasse para São Paulo num final de semana poderia passar o dia na capital trocando o cinza pelo verde, quase um colírio para os olhos. Se requalificamos as marginais, podemos inserir trens expressos e paradores, já articulados com as ligações existentes (como as linhas 1-Azul, 7-Rubi, 8-Diamante, 9-Esmeralda e 12-Safira), capilarizados com outros sistemas de média capacidade, preferencialmente automatizados, sem emissão de poluentes (APMs, por exemplo, podendo ser cogitada até a utilização de sistemas parecidos com o aeromóvel implantado em Porto Alegre pela estatal federal Trensurb).

O projeto do Parque Várzeas do Tietê do DAEE (cuja execução se arrasta), mostra que o Governo do Estado de São Paulo tem capacidade de desenhar parques lineares complexos. O que falta? Falta ousar mais, aliar os projetos à infraestrutura de transporte, garantir que o parque será realmente aproveitado por aqueles que vivem no entorno e que, inclusive, poderá proporcionar correções (melhorias nos passeios/calçadas, iluminação pública, mobiliário urbano etc).

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Infográfico sobre o Parque Várzeas do Tietê

Eu quero que um parque como o Várzeas do Tietê seja o marco para a colaboração plena estado←→municípios, principalmente envolvendo operações amplas como aquela conhecida por Arco Tietê, em realização pela atual prefeitura de São Paulo; seja o marco para que as marginais sejam, finalmente, repensadas. A chegada à capital precisa mudar, o requinte de nossos atuais sistemas de trens precisa mudar, a dependência do carro para os que moram no interior e dependem da capital precisa mudar. Recentemente fiquei estupefato ao olhar o 12º slide de um estudo da CPTM apresentado na última AEAMESP.

O cenário demonstrado no slide é incompatível com a infraestrutura atual (veja algo aqui), reforça a necessidade de trens intercidades e também reforça que nossa malha metroferroviária atual precisa evoluir muito em capacidade de atendimento e serviços oferecidos.

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Parque Dom Pedro II em 1954

Precisamos reduzir nossa ingenuidade. São Paulo sofreu pesadas transformações promovidas, sobretudo, por um ideal de modernidade e progresso que se alicerçou no automóvel. Desmontamos sistemas de bondes, postergamos a implantação de sistemas de metropolitano (nas mãos do município, a Companhia do Metropolitano de São Paulo foi nascer muito tarde, sua autorização de criação se deu em 1966, quando deveria ter sido feito décadas antes) e limitamos a evolução da infraestrutura ferroviária estruturante existente (o que, inclusive, inibiu a conversão de sistemas de trens urbanos para metrô, bem como permitiu a estruturação de tecidos urbanos problemáticos e de baixa sustentabilidade ao longo de vários pontos da faixa ferroviária, carentes de políticas públicas direcionadas). Obviamente, é um resumo simplista, já que existem aspectos econômicos (leia-se: crises, principalmente) e ainda mais outros aspectos.

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Uma famosa avenida do Centro Velho

Não estou dizendo que shopping não é legal. O shopping tem seu papel, ele pode ser legal. Mas nem só de shopping podemos viver. Muitas vezes não há um olhar para o passado, apenas para o presente, o que resulta num futuro problemático depois. Se não sabemos como a cultura do shopping (que, diga-se de passagem, é uma invenção feita para subúrbios norte-americanos de baixa densidade) surgiu, acabamos por não entender como o Parque Dom Pedro II ficou do jeito que está ou como as marginais ganharam a forma tão conhecida por quem vive na metrópole. Em São Paulo poucas avenidas conquistam as pessoas, por exemplo, a Avenida Paulista é uma delas (e eu nem gosto tanto assim da Avenida Paulista, pois em comparação com o restante do Centro Velho, não encontro nela a mesma beleza arquitetônica, nem acho que ali existem muitas oportunidades, ao passo que o Centro Velho, por outro lado, me faz enxergar inúmeras possibilidades, talvez pelo fato de ser um “patinho feio” na São Paulo de hoje, talvez por ter sido um retrato magnífico que hoje está coberto de bolor e mofo, descuidado e quase esquecido), prova de que temos muito a melhorar, prova de que São Paulo não é tão agradável quanto poderia ser.

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Uma proposta do passado que repete o erro: novas faixas para as marginais em laje, sobre o rio

Como falei das marginais, não posso fugir à regra: sempre recomendo o artigo do professor Eduardo Nobre da USP, no qual ele faz questionamentos importantes sobre o que foi feito na gestão de José Serra pelo PSDB. Vale citar uma conclusão alarmante que Nobre faz ainda na primeira página:

Por outro lado, se contabilizarmos todas as obras viárias realizadas nos últimos 30 anos que valorizaram o Centro Expandido da Metrópole, onde vivem os estratos de maior renda, chega-se ao valor suficiente para que tivéssemos hoje toda a rede de metrô básica já funcionando e a rede de trens modernizada.

Podemos nos orgulhar de algo assim? E pensar que temos registros da prática de esportes aquáticos no Tietê, em plena capital. Simplesmente impensável hoje.

O automóvel já recebeu privilégios em demasia e reforçou que seu papel é, sobretudo, coadjuvante. Em algumas cidades de menor porte, núcleos suburbanos de baixa densidade com automóveis são perfeitamente compreensíveis, mas é preciso que os habitantes não façam a utilização do automóvel sempre que decidirem visitar São Paulo (profissionalmente ou recreativamente), é preciso que tais habitantes possam estacionar o automóvel numa estação (de trem intercidades, metrô regional, BRT, VLT, não importa) e, assim, venham para São Paulo ou alguma cidade da região metropolitana sem o automóvel, utilizando nosso sistema de transporte coletivo. Por isso mencionei anteriormente o estudo da CPTM. Por isso insisti mais uma vez num parque ao longo das marginais, com bons sistemas de transporte coletivo. Por isso lembrei da desfiguração do Parque Dom Pedro II (algo pode ser interessante).

Todos ganham, munícipes de São Paulo, moradores das cidades ao redor e moradores do interior. Por uma São Paulo mais verde, mais sustentável, menos penosa para se deslocar, menos individualista.